sexta-feira, 31 de outubro de 2003

Somos pequenos...

... Esta constatação estritamente geográfica não implica qualquer juízo sobre o valor do país em que escolhemos viver (mas onde não escolhemos nascer). Somos pequenos, ponto final. Nem bons nem maus, só pequenos. Mas é um aborrecimento sermos sempre pequenos e sermos pequenos em tudo. Há dois dias que se anunciam tempestades inauditas e, até ao momento, o "cortejo de horrores" resume-se a um telhado que caiu em Gondomar e a meia dúzia de árvores derrubadas aqui e ali. Os americanos (Avé César!) são, ao contrário de nós, quase sempre grandes e quase sempre grandes em tudo. Quando se fala num tufão, num incêndio ou numa explosão de gás, são varridas pelo menos cinco cidades de média dimensão, ardem áreas do tamanho de vários países pequenos e desaparecem quarteirões inteiros.

Há ofertas que valem 1000 palavras

Pediu-me desculpa pelo atraso em relação à data do meu aniversário e passou-me a garrafa para as mãos como se de um ritual religiosos se tratasse. "Reguengos 1990 - Garrafeira dos Sócios". Ofertas destas dizem muito mais sobre quem dá do que sobre quem recebe. Tentarei estar à altura desta delicadeza, apreciando o precioso néctar com os sentidos em estado de alerta máximo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2003

Vida antes da morte

"Será que há vida antes da morte?" A ideia assaltou-me (à mão desarmada) enquanto assitia a uma peça de teatro - cómico, segundo os cartazes à entrada - cujo leitmotiv era exactamente este. Quando foi apresentada esta "dúvida existencial", logo no início da representação, a plateia riu. Mas por pouco tempo. Estou em crer que, se a peça fosse apresentada como "trágica", a plateia teria reagido às mesmas palavras com um silêncio sepulcral. Eu continuo à procura de um motivo para rir da pergunta...

Entre pedras, palavras...

Que estupidez o sangue nas calçadas!
O sangue fez-se para ter dois olhos,
um lépido pé, um braço agente,
uma industriosa mão tocante.
Que estupidez o sangue entre as palavras!
O sangue fez-se para outras flores
menos fáceis de dizer que estas
agora derramadas.


(Alexandre O'Neill, Poesias Completas)

DdP

  • BILTRE - nm Patife; homem vil; infame.

  • SACRIFICANTE - adj e nm/f Sacrificador; o que celebra a missa.

  • ESTULTO, adj e nm Néscio; tolo; parvo; insensato.

  • ÓBOLO, nm Pequena moeda grega; (fig.) pequeno donativo ou esmola.


  • Afinal está vivo!

    Theias falou e, pasme-se, até falou bem. As áreas de reserva sob tutela do ICN só podem gravitar na esfera de competências do Ministério do Ambiente. Qualquer alternativa é inadmissível.

    quarta-feira, 29 de outubro de 2003

    Afinidades

    Por vezes acontecem destas coisas. Enquanto passeamos distraidamente pela blogosfera, tropeçamos em algo completamente fantástico. Aqui está o que eu teria escrito, se para tanto houvesse talento, quando vivi longe do torrão natal.

    Para o Ferro, com amizade

    "Vem por aqui" – dizem-me alguns com olhos doces,
    Estendendo-me os braços, e seguros
    De que seria bom que eu os ouvisse
    Quando me dizem: "vem por aqui!"
    Eu olho-os com olhos lassos,
    (Há nos meus olhos ironias e cansaços)
    E cruzo os braços,
    E nunca vou por ali...

    A minha glória é esta:
    Criar desumanidade!
    Não acompanhar ninguém.
    – Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
    Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

    Não, não vou por aí! Só vou por onde
    Me levam meus próprios passos...

    Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
    Porque me repetis: "Vem por aqui"?
    Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
    Redemoinhar aos ventos,
    Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
    A ir por aí...

    Se vim ao mundo, foi
    Só para desflorar florestas virgens,
    E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
    O mais que faço não vale nada.

    Como, pois, sereis vós
    Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
    Para eu derrubar os meus obstáculos?
    Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
    E vós amais o que é fácil!
    Eu amo o Longe e a Miragem,
    Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

    Ide! Tendes estradas,
    Tendes jardins, tendes canteiros,
    Tendes pátrias, tendes tectos,
    E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
    Eu tenho a minha Loucura!
    Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
    E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

    Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
    Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
    Mas eu, que nunca principio nem acabo,
    Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
    Ninguém me peça definições!
    Ninguém me diga: "vem por aqui"!
    A minha vida é um vendaval que se soltou.
    É uma onda que se alevantou.
    É um átomo a mais que se animou...
    Não sei por onde vou,
    Não sei para onde vou,
    Sei que não vou por aí!


    (José Régio, "Poemas de Deus e do Diabo")

    Bernardo Soares, o primeiro (e até hoje o melhor) blogger português!

    Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.
    Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio. (Bernardo Soares, "O Livro do Desassossego")

    terça-feira, 28 de outubro de 2003

    DdP

  • LÁTEGO - nm Açoite de couro ou de correia entrançada; azorrague; (fig.) castigo; flagelo; estímulo; nome de um peixe frequente nas águas portuguesas, também conhecido por bodião.
  • AZORRAGAR - vtr Açoitar com azorrague; (fig.) incitar; estimular.
  • Dicionário do Portuense (DdP)

    Com a devida vénia ao A Natureza do Mal, também aqui se introduz a partir de agora uma rubrica cultural (DdP), numa tentativa desesperada para elevar o nível deste blogue. Sem periodicidade definida, serão escolhidas palavras - e respectivos significados - que, por um motivo ou por outro, me despertaram curiosidade. Só isto.

    segunda-feira, 27 de outubro de 2003

    A cruz de Wojtyla

    É cada vez mais penoso assistir ao calvário do sucessor de Pedro. Numa época de glorificação da juventude, da eficácia e da produtividade, somos confrontados quase diariamente com o destino de um homem - e, por essa via, com o nosso próprio destino - que escolheu carregar a sua cruz até ao final da caminhada. Este sacrifício é um testemunho de fé e de coragem mas, sobretudo, um apelo às nossas consciências. E que deverá ter uma expressão quotidiana. Não é aceitável a hierarquia de valores que a sociedade hodierna nos impõe e é essa a mensagem mais importante a extrair das violentas imagens deste homem que caminha, em público, para o final da sua vida. A sua postura frágil e curvada só se explica perante Deus. Entre os homens, Wojtyla nunca caminhou com tanta dignidade.

    Já passou um ano

    Um ano após a entrada no Palácio do Planalto, Lula da Silva conseguiu congregar em torno do seu projecto a maioria da população brasileira. A mobilização é notória e os índices de risco do investimento cairam para mínimos históricos, o que reflecte a confiança das instituições internacionais no executivo PT.
    Apesar de o crescimento de 1% do PIB ficar aquém dos prometidos 4 a 7%, as perspectivas para o futuro próximo são positivas e essa meta parece perfeitamente alcançável já no próximo ano.
    Esta lufada de esperança é importante para o Brasil, mas é também um incontestável factor de motivação para a América Latina. Encurralados entre a prepotência neocolonial dos EUA e as lideranças democraticamente deficitárias (quando não se conjugam ambos), os países da região podem aprender muito com a pedagogia do exemplo brasileiro.

    sexta-feira, 24 de outubro de 2003

    Chegou esta manhã

    O frio veio timidamente visitar a cidade que acorda. Podes entrar, já estávamos à tua espera.

    quarta-feira, 22 de outubro de 2003

    Novelas

    Muito por culpa própria, o PS está refém do desfecho imprevisível de uma novela judicial. Até lá, os discursos são erráticos, a postura é comprometida e a autoridade moral é frágil.
    Triste destino para o maior partido da oposição. Entretanto, o Bloco de Esquerda continua a liderar a oposição parlamentar...

    Alguém liga ao que ele disse?

    O Presidente falou e a nação ouviu.
    O seu discurso mereceu o aplauso e a concordância de todos os partidos políticos.
    Ainda assim, alguém acredita que alguma coisa vá mudar (para melhor) no que diz respeito às fugas cirúrgicas de informação enquanto forma sistemática e politicamente orientada de violação do segredo de justiça?

    segunda-feira, 20 de outubro de 2003

    O teste do algodão

    João Soares tem na reunião da Comissão Política da próxima quinta-feira a oportunidade ideal para mostrar (ou não!) o seu carácter.
    Os acontecimentos da última semana fragilizaram o secretário-geral socialista e devem constituir um forte motivo para que os "submarinos" do PS (que têm andado activos como nunca) subam à superfície e apresentem alternativas.
    Se assim não fizerem, o país e o partido ficam a conhecer a fraca estirpe dos candidatos que se irão perfilar à sucessão.
    Nesse dia - quando o risco de perder for demasiado pequeno e quando já estiver concluído o trabalho prévio de desacreditação do líder - surgirão com estratégias brilhantes e inovadoras...

    sexta-feira, 17 de outubro de 2003

    Dúvida e medo

    As recentes intervenções de Ana Gomes intrigam-me profundamente...
    Tratar-se-á da antiga embaixadora de Portugal na Indonésia ou de alguém completamente diverso?

    Lei da Oferta e da Procura - a questão brigantina

    Num só pulo, Bragança deixa definitivamente o anonimato das pequenas cidades do interior português e entra pelo olhos de toda uma Europa que lê a "Time".
    O mercado brigantino da prostituição tem funcionado, até aqui, de forma satisfatória, havendo um equilíbrio entre a oferta e a procura que permite uma política de preços ajustada ao poder aquisitivo dos clientes destes serviços (maioritariamente homens residentes na cidade).
    Acontece, porém, que a operação de marketing lançada pela "Time" peca por excesso e apregoa uma oferta em quantidades que em nada têm paralelo com a realidade da cidade.
    As hordas de turistas sexuais que irão começar a afluir a Bragança demandando os serviços que viram publicitados na revista vão desequilibrar o mercado, provocando uma inevitável subida dos preços que, em última análise, irá prejudicar os clientes nacionais com menor poder aquisitivo.
    Claro que a economia da região sofrerá um impacto positivo em sectores ligados à restauração, hotelaria e transportes, mas a líbido dos homens de Bragança pagará um preço elevado por tal benefício na economia local.

    Mas afinal... quem é que devia pagar por eles?

    Os estudantes teimam em manifestar um profundo descontentamento por serem obrigados a contribuir financeiramente para o aumento da qualidade do seu próprio ensino. Até agora, só conseguiram criar anticorpos na restante sociedade - que também não está disposta a pagar por eles!

    quarta-feira, 15 de outubro de 2003

    Trilogia "Provérbios da minha infância"

    A trilogia "Provérbios da minha infância" pode ser comparada diariamente com os "case studies", comentários e enquadramentos conceptuais do caso "Casa Pia".

    terça-feira, 14 de outubro de 2003

    A cidade adiada

    Sobrevivente na cidade adiada, o Portuense passeia o seu desencanto pelas estreitas avenidas de um destino por cumprir.

    quinta-feira, 9 de outubro de 2003

    Estudantes na rua

    A vaga de manifestações estudantis ameaça tornar-se insuportável.
    A opinião pública já se foi acostumando à sazonalidade desta erupções contestatárias orquestradas pelos dirigentes associativos. Confrontados com a sua própria incapacidade em assumir o estatuto de interlocutores idóneos junto dos órgãos directivos universitários e do Ministério da tutela, remetem-se ao papel fácil - mas incoerente - da contestação gratuita a toda e qualquer medida previsivelmente impopular entre as suas hostes.
    O crescente alheamento da comunidade estudantil em matérias de política, cultura e até educação (no sentido mais abrangente) em muito contribui para o actual panorama do dirigismo estudantil português.
    Encurralados entre as directrizes revolucionárias (sem causa) de uma JCP e o conformismo comprometido de uma JSD, vão medrando jovens líderes que, uma vez eleitos pelos seus pares, são guiados pelo propósito único da sobrevivência no poder fátuo das estruturas estudantis.
    Este marasmo de ideias e de estratégias é agitado pelas mediáticas manifestações que mais não fazem do que mostrar à sociedade uma classe universitária desorientada, com sede de protagonismo e confrontada com uma confrangedora falta de orientação estratégica.
    Estas “provas de vida” das direcções associativas já há muito deixaram de ser ridículas. Continuam patéticas, mas inspiram cada vez mais o choro e menos o riso.

    A moral segundo Bill Gates

    A decisão de fechar as salas de “chat” de acesso livre por parte da Microsoft é, no mínimo, despropositada. O argumento de que esta facilidade seria utilizada por pedófilos que aí procederiam a actos ilícitos - nomeadamente ao aliciamento de potenciais vítimas - não resiste a qualquer análise lúcida.
    Seguindo a mesma linha de raciocínio dever-se-iam suspender os instrumentos de comunicações móveis que são reconhecidamente utilizados de forma continuada por traficantes de droga, pedófilos, assaltantes e toda a espécie de malfeitores. De seguida, seriam proibidos os automóveis (não consta que os pedófilos que actuam no Parque Eduardo VII aí se desloquem a pé) e por aí fora…

    sexta-feira, 3 de outubro de 2003

    Revisionismo histórico

    A recente inauguração do busto de Adelino Amaro da Costa no jardim do Palácio de Cristal é uma acto duplamente lamentável.
    Em primeiro lugar, contraria a vontade dos cidadãos do Porto que, maioritariamente, não se revêem nesta iniciativa voluntarista e inoportuna de Rui Rio. Em segundo lugar, a homenagem está inserida numa inaceitável operação de revisionismo histórico orquestrada pelo actual líder do CDS-PP que é, a todos os níveis, ofensiva da memória e do património humano do partido a que preside.
    A patética, mas nada inocente, colagem a Adelino Amaro da Costa surge na linha de outras comparações do ministro de Estado e da Defesa com personagens como Donald Rumsfeld aquando da visita deste último ao nosso país.
    Paulo Portas apresenta de si próprio uma imagem perigosamente próxima do arquétipo dos seus inimigos políticos. Quem lhe adivinharia as tendências para o revisionismo histórico e para o culto da personalidade quando, nas revoltadas páginas do “Independente”, ia destilando indignação e ódio contra os pecadilhos políticos da era cavaquista? E que dizer então da coincidência destas práticas de promoção pessoal com as do regime estalinista, permanentemente zurzido pelo líder do PP, mesmo passadas décadas sobre o fim do mesmo?
    Para além desta inauguração e dos discursos de circunstância, ficou clara a estratégia de Paulo Portas. Pretende manter o seu poder dentro do Governo, por força de uma coligação que lhe permite dispor de um protagonismo e influência política que não corresponde nem de perto nem de longe ao peso político do seu partido na sociedade portuguesa.
    Esta situação perverte a representatividade democrática no Governo da nação e esvazia o futuro político do CDS-PP, através de uma abdicação permanente das suas bandeiras históricas em matérias como o federalismo, a regionalização, o aborto, etc.
    O CDS-PP está a pagar um preço demasiadamente elevado - o seu próprio futuro enquanto partido independente - pela ambição pessoal de Paulo Portas.

    Causas e Consequências

    As inqualificáveis agressões a que foi submetido um deputado da República não podem ser ignoradas nas suas causas mais profundas, sob pena de, num futuro próximo, se virem a repetir.
    Em Felgueiras foram expostas à evidência as graves debilidades de que ainda enferma a nossa cultura democrática.
    A “sociedade da informação”, erroneamente percepcionada pela classe política como generalizada no Portugal hodierno, apresenta ainda vastas zonas de exclusão de que a enraivecida mole humana felgueirense é um exemplo. O “país a duas velocidades” é uma realidade e tentar escondê-la terá consequências ainda mais gravosas do que combatê-la.
    A classe política não pode ignorar este dramático alerta para o défice cultural que ainda grassa em algumas zonas do país (e não apenas no interior!). As políticas e os instrumentos de que dispõe neste domínio (formação e informação) deverão ser monitorizados na sua eficácia e eficiência e, se necessário, reformulados sem demora.
    Se a apropriação errónea de conceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias do regime democrático é imputável a alguma iliteracia das populações, não é menos verdade que a classe política tem também responsabilidades às quais não se pode eximir e que são exclusivamente suas. A defesa reiterada de posições corporativistas - não poucas vezes ao arrepio dos padrões morais, éticos e deontológicos que deveriam pautar a sua actividade - conduziu ao progressivo descrédito da classe e constitui uma causa próxima para os selváticos ataques ao deputado Francisco Assis.
    Estão também agora à vista os efeitos de certa política, eivada de demagogia, de populismo desbragado e de apelos sistemáticos aos sentimentos mais elementares das populações.
    Este caldo de cultura potencia a alienação das massas e tem, por isso, consequências imprevisíveis.
    O país profundo existe e, entre manifestações de indignação e discursos de boas intenções, continua a afundar-se inexoravelmente perante o atavismo geral.
    O vilipêndio das instituições democráticas, já severamente fragilizadas por outros escândalos, não pode ficar impune.
    O regime democrático está ameaçado e já levou as primeiras estaladas. Continuará a representar o papel do pai demissionário por muito mais tempo?

    E as vítimas da "Guerra" de Joanesburgo?

    Não haja equívocos, a Cimeira da Terra em Joanesburgo foi um fracasso global e provocou um número incomensuravelmente maior de vítimas do que a mais recente sequela da Guerra do Golfo. Em Joanesburgo as expectativas iniciais eram propositadamente baixíssimas, com vista à divulgação de uma imagem de sucesso relativo no final da Cimeira. A ardilosa estratégia não apagou, contudo, as sentenças de morte que ali foram passadas a 13 milhões de seres humanos do Lesotho, Malawi, Moçambique, Swazilândia, Zâmbia e Zimbabwe, que lutam diariamente contra a fome e que não puderam encontrar em Joanesburgo um aliado no seu combate pela sobrevivência. O manto da ignomínia cobriu de novo as mais altas figuras mundiais e foi dado o mote para nova investida anti-globalização. Já não há operações cosméticas que mascarem o lodaçal fétido da diplomacia internacional.
    A reacção - também ela cada vez mais global - contra a globalização, não combate um conceito que poderia até ser interpretado de uma forma ambiental e socialmente equilibrada (ex.: taxa Tobin), mas antes uma bem urdida teia de interesses norte-americanos e europeus que, em prejuízo dos direitos mais elementares de uma porção significativa da população mundial, prosseguem a sua marcha triunfal sobre as economias depauperadas dos países sub-desenvolvidos e em vias de desenvolvimento.
    As metas que enformaram o plano de acção desta Cimeira eram de tal forma pouco ambiciosas que os próprios agentes económicos mais perversamente implicados nesta cruzada desenfreada pelo triunfo do capital global devem estar agradavelmente surpreendidos com os resultados obtidos. O “sucesso” despudoradamente apregoado por alguns líderes mundiais só serve uma minoria depredatória, amoral e geracionalmente egoísta que compromete seriamente o futuro da humanidade, sacrificando-a no altar da globalização neoliberal.
    Esta é a globalização das injustiças sociais e da exploração irracional dos recursos. Com ela se vai cavando diligentemente o fosso entre ricos e pobres, entre globalizantes e globalizados. Uma ameaça, porém, é global e terrível, afectando indistintamente uns e outros – a destruição progressiva dos ecossistemas e a veloz aproximação do ponto de ruptura a que chamamos insustentabilidade!